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“Maravilhoso Boccaccio” (2015): a arte de resistir

Falei dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani – diretores deste Maravilhoso Boccaccio (Maraviglioso Boccaccio) – em fins de 2012, após ver o brilhante César deve morrer (Cesare deve morire, 2012), premiado documentário metalinguístico (ganhou o Leão de Ouro no Festival de Berlim) a respeito dos ensaios e encenação do drama de Shakespeare Julio César, na prisão de Rebbibia, em Roma. 
Maravilhoso Boccaccio, a obra seguinte na filmografia dos irmãos, abandona o gênero documental em prol da ficção. Toma uma das obras máximas da literatura italiana, o Decameron de Giovanni Boccaccio – narrativa caudalosa com lastro para preencher centenas de filmes –, depreendendo dela o seu sumo. 
A obra de Boccaccio tem relevância fundamental para a literatura italiana. É narrativa fundacional, a exemplo dos Lusíadas, escrita em dialeto toscano (entre 1348 e 1353) quando a língua de cultura ainda era o latim. E promove uma revolução não só na forma como no conteúdo, advogando, nas portas do Renascimento, em favor de um mundo das sensações, de entrega aos prazeres terrenos, em contraposição ao amor espiritual valorado na Idade Média. 
As cem narrativas impressas ao longo de quase 1000 páginas de texto têm um leitmotiv comum: a rendição ao amor e à pândega, enfim, a fruição da vida, breve como nunca naquele tempo de peste, que a obra retrata sem distanciamento algum que separe o fato histórico do literário. 
A obra é luminosa, aprazendo muito, ainda, o leitor contemporâneo. E proporciona, àqueles que desejam adaptá-la, possibilidades várias de recorte – anos atrás, uma das turmas de teatro da UNICAMP adaptou ao palco, com fortes vieses carnavalescos (e grande rendimento cênico), apenas os contos eróticos do livro. 
Já os Taviani mostraram-se pudicos na escolha dos contos que comporiam a sua obra, o que surpreende, mas talvez remeta à iconografia do Renascimento, glosada pela fotografia da obra. Detêm-se nas histórias de amor derramadas, deixando-se de lado quase que totalmente a explosão de sensualidade que é a principal tônica – ao menos a que eu mais me lembro – da obra de Boccaccio. 
O que de jeito nenhum é uma crítica ao filme. 
Faz-se ali uma leitura linear da obra adaptada. Maravilhoso Boccaccio principia na cidade de Florença infestada pela peste. Há um distanciamento contemplativo na apreensão que os irmãos fazem da melancolia daqueles que morrem e daqueles que veem os seus morrerem. Cortes secos impedem que o público atinja o cerne de certos eventos tabus, que desde tanto tempo viraram espetáculo: o suicídio do homem doente, que despenca do alto do Campanile; ou do pai de duas crianças colhidas pela doença, que escolhe deixar-se enterrar com elas a abandoná-las na vala comum. 
O signo da melancolia faz-se presente mesmo a vivenda que se torna refúgio dos jovens fugidos da cidade doente. Fusões costuram o sangue dos mortos, ou as maçãs perigosamente infectadas, com as flores vermelhas que tingem o gramado verde. E a violência da morte vizinha interpenetra-se nas histórias narradas pelo grupo: o bobo enredado, a vingar-se com insuspeitada violência pela peça que lhe pregam, desdobra-se no mancebo toscano que lhe conta a história e, no fim dela, mimetiza-lhe os trejeitos; a borboleta prenunciadora de desgraças, que se afoga na taça da jovem apaixonada, estende os seus eflúvios da ficção à realidade: ao fim da história, é a morta quem narrará o desenlace de sua existência, visitando empiricamente os jovens que lhe dão vida. 
Ao fim e ao cabo, Maravilhoso Boccaccio não se afasta tanto assim de César deve morrer: entremeia, ele também, vida e arte, ambas instâncias consubstanciais. A literatura de Boccaccio presentificava as histórias narradas, tomando os âmbitos da ficção e da ficção-dentro-da-ficção como fios de um mesmo tear. 
A peste tão próxima, que visita a História como a história em microcosmo que o livro tece, aproxima uma e outra, dando a tudo foros de verdade. A fotografia dos Taviani trata as duas instâncias com o mesmo fulgor, recusando-se igualmente a separá-las, impondo-as ao espectador com uma mesma incontornável presença. Presença potencializada pela música rediviva de Rossini, Verdi e Puccini – distantes temporalmente centenas de anos do texto de Boccaccio, no entanto eternas como ele. 
Há que se dizer um mundo sobre o papel afetivo desempenhado pela música desses três senhores, nesses nossos corações latinos tão eivados da pieguice importada d’além-mar. Além do valor histórico das óperas italianas, fundadoras de um imaginário de pátria – assim como a literatura de Boccaccio fundara uma língua – está o poder de comoção desta trilha que embalou a travessia de tantos dos nossos ascendentes pelos descaminhos da vida. As lágrimas apenas não chegarão aos olhos do espectador cujo coração for feito de pedra...

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